•.¸¸.ஐ Sapatos Vermelhos

Ela não queria sair de casa naquela tarde. A luz a incomodava, resistia ao Sol daquele horário inventado que lhe roubava o sono, a paciência e o sorriso. Na verdade, resistia ao Sol. Filha da noite, em seus olhos lia-se o anseio pela Lua enquanto esgueirava-se por aquele baile de máscaras e vaidades que o dia a obrigava.

Demorou-se no banho mais pelo prazer da espuma em seu corpo e pela água gelada que por outro sentimento. Abriu a janela ao vento, mas fechou a cortina à luz. Escancarou as portas do guarda-roupa sem a menor vontade de abandonar a umidade da toalha. Tão bom estar ali...

Em meados de outubro, sabia, as noites costumavam ser frescas. Tanto quanto sua pele limpa após o banho. Sem paciência para suas calças jeans e camisetas xadrezes, concentrou-se nos vestidos. Sim, ela tinha vestidos nos cabides e adorava usá-los.

Pensou na Lua cheia que a encontraria dali poucas horas e escolheu um modelo que lhe caía bem. Mais, que lhe fazia sentir bem e sorrir. Era mais flor – uma linda dama da noite, por certo – que mulher. Sapato de boneca, olhos bem marcados por lápis preto esfumaçado e boca rosada. Quando saiu do quarto, já era noite. Entregou-se sem reservas.

Chegando ao teatro, viu que ainda era cedo. Gostava sentar na praça, apreciar os galhos das árvores, as folhagens novas, o céu. A visão daquela Lua cheia, a maior que já vira, arrebatou-lhe a alma de tal forma que chorou. Ela sabia que seu ciclo correspondia ao lunar. Mais, tinha ciência de que cada mulher carregava uma lua própria, dentro de si, mas que a maioria sequer se dava conta disso, dos próprios ciclos. Uma pena...

Voltou para frente do teatro. Logo viu conhecidos na fila, cumprimentou a todos enquanto deixava a brisa envolver-lhe as pernas e sorria. Os minutos foram se contando, ininterruptos, como seus passos, errantes. Até que estancou.

Seus olhos foram atraídos por um par de sapatos vermelhos. Não um vermelho qualquer. Carmim. Se o desejo tivesse cor, seria aquela. Foi subindo pelas pernas abrigadas numa calça jeans da qual gostou. Entreviu uma camisa escura com certo brilho e um sobretudo preto.

Por último, descobriu-lhe sorriso. E a inteligência e o bom-humor cotidiano. Como? Trabalhavam juntas. Mesma sala. Conhecia-lhe dois perfumes que amava. E o cabelo todo cachos sempre preso. Mas ali, os caracóis emolduravam-lhe o rosto ornamentado por aqueles óculos de ar engravatado que adorava. Ah, e o perfume... O aroma mais cítrico que conhecera, impregnava-se nela feito uma segunda pele.

Gostava admirar aquelas formas que eram tão semelhantes às suas. Gostava imaginar aquelas formas junto das suas. Tantas tardes embarcava em sonhos com ela... Suspirou de modo que a outra ouviu e a percebeu. Sorriram-se.

Gostava daquele jeito despojado dela, daquela espontaneidade aprendida, treinada, desenvolvida. É que entre outras ocupações, a outra era também atriz. Acabaram por assistir à peça juntas. Ou nem tanto...

Sentaram-se lado a lado, primeira fileira. Acomodadas, os braços roçaram-se. Ela sentiu de imediato a respiração alterar e um arrepio percorrer-lhe o corpo. Esperou reação da outra, mas os braços continuaram unidos enquanto os olhos viam o palco. Ou quase.

Ela via aquele sapato vermelho de salto elegante que tanto lhe chamara atenção. Via as duas longe dali ou mesmo ali, mas sem mais ninguém envolta. Voltou a olhar os atores, mas de quando em vez desviava para seu lado direito, onde sua atenção e desejo estavam concentrados.

Sentiu a outra respirar fundo. Outro arrepio, intenso, percorreu-lhe inteira. Perceptível à sua companhia. E assim queria que fosse. Naquela meia luz, quis aqueles dedos sobre suas pernas, coxas meio deixadas à mostra pelo vestido. Quis aquela boca que lhe segredava comentários mais rente ao seu ouvido, a compartilhar outros quereres.

Dividia-se entre o encanto do que era encenado e o encanto que emanava de tão perto, mais do que todos os dias, mais do que quando se cruzavam ao abrir a porta. Ruborizava e apertava ainda mais os dedos. Queria era os dedos dela entre os seus.

E aqueles sentimentos eram regados dia após dia, renovados a cada cumprimento, sorriso, instante, olhares. Aplaudiram juntas o fim do espetáculo, cada uma reagindo a seu modo a um texto que tanto lhes falava. Ela chorou durante a peça. E fez com que a outra percebesse aquela sensibilidade.

Nas luzes acesas, logo foram buscadas por outros olhos conhecidos. Afastaram-se. Ela não estava ali a passeio. A outra acompanhava um grupo de amigos, os quais tinha deixado para entrar com ela no teatro. Só para que ela não ficasse sozinha.

Saíram. Conversas bestas do lado de fora, burburinho de gente, de encontros, de beijinhos e despedidas. As duas moravam em cidades vizinhas. E iam cada uma para um lado. Ela reuniu toda a sua meiguice e foi conquistar o abraço que há tanto queria.

Aproveitou para enlaçá-la a cintura e dar um beijo no rosto, ali, pertinho da boca que queria tanto conhecer. Sentiu um carinho em seus cabelos e gostou encontrar aquela ternura no olhar dela. A outra chamou-a de volta a seus braços.

- Fica comigo... Depois eu levo você pra casa, pra cama, pro altar, pra onde você quiser, e não necessariamente nessa ordem.

Ela aconchegou a cabeça na curva do pescoço da outra para sorver melhor aquele perfume que lhe perturbava os sentidos e produzia umidade entre as pernas. Sorria. Um sorriso grande, de felicidade intensa de quem ouve palavras mágicas ou estrelas.

Encostou o corpo no da outra, firmou o olhar no da outra. Eram da mesma altura. Deliciosamente compatíveis.

- Me leva pra você!

E foram.

3 comentários:



Ava disse...

Querida, quando escreves, é como se repicasse seu coração em diminutas palavtas e o colacasse aqui, em forma de um texto tão lindo!

Voce é pura emoção e sentimentos...

Beijos meus!

Fil. disse...

mana, você voltou!! lindo o texto... um dos meus preferidos! *---*


to te seguindo, te amando, querendo ser assim tão belo quanto a ti.

Fada poética do meu coração lunar.

Miri disse...

Lindo texto! Um encanto!

Abraços.